segunda-feira, 30 de maio de 2011

A TEOLOGIA DA IMAGEM - A IMAGEM COMO PARTICIPAÇÃO DO DIVINO (última parte)

A imagem como participação do divino
(O ícone Imagem do Invisível - Egon Sendler - tradução)


Na sua análise das diversas espécies de imagens (Adversus eos qui sacras imagine abiciunt, - Contra aqueles que lançam ao mar suas imagens - de 730), João Damasceno aplica as categorias neoplatônicas de Dionísio, o Aeropagita. Para ele a imagem é participação do modelo e do protótipo. Essa participação não é somente poética, mas ontológica; a participação é semelhança ontológica. Por sua natureza, a participação na ordem da criatura nunca é adequada, mas inclui sempre uma deficiência. Portanto São João Damasceno define a imagem como “uma semelhança que caracteriza o protótipo, sendo diferente de qualquer coisa”¹. O grau da semelhança depende do grau da sua participação no protótipo. É o princípio da classificação de São João Damasceno. Partindo da imagem consubstancial que é o Verbo, chega ao ícone, o reflexo da realidade invisível da matéria.


A imagem, na sua forma perfeita, diz ele, não existe senão na Santíssima Trindade: é o Verbo eterno gerado do Pai, que possui em si a plenitude da natureza divina. Tudo o que possui o Pai, o possui o Filho. O Verbo é participação perfeita, sem deficiência, é semelhança perfeita: a sua natureza é a natureza própria do protótipo.


A Paternidade - Escola de Novgorod, séc 14 - Galeria Tretjakov, Moscou.

O grau seguinte desta hierarquia é a imagem que Deus tem das coisas criadas partir dele: o mundo do jeito que existe no “conselho eterno de Deus”. São João Damasceno retorna à expressão de Dionísio que ele tinha qualificado de ‘predeterminação’. Antes da sua existência, da eternidade, as coisas estão presentes no pensamento de Deus como um modelo, como uma imagem.


O terceiro gênero de imagens são as coisa visíveis enquanto representam as coisas invisíveis: “sem a figura, desse modo, retratando-lhe corporalmente, nós temos um conhecimento velado”². A razão é que o homem não pode elevar-se à contemplação das coisas invisíveis sem a mediação das coisas visíveis. Também a Escritura se adapta à insuficiência do nosso espírito, para despertar em nós o desejo de Deus. Analogamente, a natureza revela os mistérios da fé: no sol, na sua luz e nos seus raios se refletem o mistério da trindade. Da sua parte, por assemelhar-se a Deus, o homem recebeu a inteligência, a palavra e o respiro.


O quarto gênero de imagens é vizinho ao precedente: são as coisas futuras que podem ser prefiguradas como uma coisa ou um advento presente: assim a sarça ardente evoca a Mãe de Deus, a água e a nuvem evocam o Espírito que batiza.


O quinto gênero de imagens é aquele das coisas passadas que são feita para conservar a memória de um personagem ou de um acontecimento. Estas imagens são expressas com a palavra nos livros ou são reproduzidas sobre os quadros para serem contempladas por nós. “Graças a esses, evitamos os males e aspiramos ao bem”³. É neste ponto que São João Damasceno menciona o ícone: “Nós, então, hoje, pintamos imagens (ícones) de cores que são estados eminentes de virtude, para trazer de volta à memória, para imitá-los, e para o amor que carregamos conosco”.


São João Damasceno não se alonga na sua análise sobre as imagens. Nesta hierarquia que vai da semelhança perfeita pela identidade substancial entre o Pai e o Filho até as coisas sensíveis, a imagem ocupa o grau mais baixo. Aqui a analogia é a menos perfeita. São João Damasceno não distingue a imagem natural, a que é capaz de participar da substancia do protótipo, da imagem artificial, que participa com a sua semelhança. A concepção da imagem se funda, antes de qualquer coisa, sobre uma participação ontológica.


A razão desta ambigüidade é devida indubitavelmente ao fato que São João Damasceno devia enfrentar a objeção fundamental da iconoclastia, cuja opinião é de que a matéria é prisioneira, é incapaz de representar a realidade espiritual. Para revalorizar a matéria, ele busca ajuda nas categorias do neoplatonismo de Dionísio e assim dá à participação ontológica um novo aspecto, fundando-a sobre a cristologia: “Não cessarei de venerar a matéria pela qual me veio a salvação, mas não a venero como Deus. Como poderia ser Deus aquilo que teve a existência vinda do nada? Também se o corpo de Deus é Deus, é advindo pela união hipostática sem mudança senão aquela da unção, para permanecer o que é por natureza, e isto é carne animada de uma alma racional, criada e não criada. Mas venero pois o resto da matéria mediante a qual me veio a salvação, como repleta da energia divina e de graça (...) Não desprezo a matéria: essa não é desonrosa, porque nada do que Deus fez é desonroso”.


Deste texto resulta bem o caráter da imagem na sua riqueza, bem como se chega ao último grau da hierarquia. O princípio fundamental desta concepção deriva da Encarnação do Verbo. Na união do Verbo com a natureza humana, o corpo de Cristo se tornou santo, pleno de graça: João o chama assim homótheos, - igual a Deus. E, no seu corpo, toda a matéria foi santificada. “Parece que no pensamento de Damasceno se vê a idéia da comunicação difusa da santidade do corpo de Cristo às outras matérias, a idéia de uma participação ontológica entre o corpo de Cristo e a sua efígie”.

 A Transfiguração - Igreja de Berat, séc 16 (Foto Bulloz).

Estas duas análises da imagem, uma no espírito e no método do aristotelismo, e a outra seguindo o esquema do neoplatonismo de Dionísio, parecem antes visões opostas, mas no fundo acabam coincidindo. A análise do sinal parte da forma mais simples para elevar-se até o símbolo com seu caráter epifânico. A análise do ícone começa com a imagem consubstancial na divindade, para subir até a maior materialização. Sem dúvida, a segunda concepção é mais rica, porque supõe a Revelação e é mais habitual ao mundo bizantino. Todavia, elas têm em comum o traço essencial do ícone: uma presença do indizível que vem da matéria.


¹ Adversus eos qui sacras imagine abiciunt, op. cit. – PG 94, 1240.
² Von Schoenberg, Christoph, L’iconê du Christ, Éditions Universitaires, Freiburg (Suíça), 1976, pg. 191-193.
³ Op. cit. – PG 94, 1243-1244.
Op. cit. – PG 94, 1245.
Ibidem.
Schoenberg-CHR, Von, op. cit., pg. 195.

Mir

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